quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Teologia e Moral Vaishnava


1. JUSTIÇA E COMPAIXÃO
Como em toda sociedade, conflitos morais ocorrem na cultura Védica,
freqüentemente envolvendo uma tensão entre princípios morais de justiça e compaixão.
De fato, encontramos exemplos disto nos próprios passatempos do Senhor Krishna,
geralmente resultando numa tentativa de encontrar um equilíbrio entre justiça e
compaixão.
ASVATTHAMA
Encontramos um notável exemplo disto no primeiro canto do Bhagavatam,
quando Arjuna prende o assassino Asvatthama e o traz de volta ao campo dos Pandavas.
A seqüência dos eventos é como segue:
4
1.7.35 O Senhor Krishna ordena Arjuna a matar o preso Asvatthama.
1.7.35-39 Krishna apresenta a causa para matar Asvatthama, ordenando Arjuna
diretamente, mais uma vez, [1.7.39] a matá-lo.
1.7.40-41 Arjuna decide não matar Asvatthama, apesar de ter sido ordenado
duas vezes por Krishna a fazê-lo, e, pelo contrário, o trás de volta ao campo dos
Pandavas entregando-o a Draupadi.
1.7.42-48 Draupadi insiste pela libertação de Asvatthama sob o pretexto de
compaixão pela mãe dele e respeito pela casta brahmana.
1.7.49 Yudhisthira concorda com Draupadi.
1.7.50 Nakula, Sahadeva, Yuyudhana, Arjuna, Krishna e todas as mulheres,
concordam com Draupadi.
1.7.51 Bhima insiste em matar Asvatthama.
1.7.53-54 Krishna diz a Arjuna que Asvatthama deveria ser morto e não morto, e
ordena Arjuna a satisfazer tanto Draupadi quanto Bhima.
1.7.55-56 Arjuna corta o topete e a jóia do prisioneiro e o expulsa, humilhado e
socialmente morto, do campo.
Podemos notar o seguinte sobre essa história:
A. O debate sobre o destino de Asvatthama centra-se sobre o dharma, o qual é
uma das palavras padrão para a moralidade.
B. Havia tensão entre duas posições morais, ambas posições defendidas por
grandes devotos.
C. Krishna ordenou uma punição severa, mas então mudou Sua posição ao ouvir
o apelo compadecido de Sua devota, Draupadi.
D. Bhima insiste por justiça, Draupadi insiste por misericórdia. Krishna
finalmente aceita uma conciliação entre justiça e misericórdia.
Uma outra história do Bhagavatam, encontrada no décimo canto, capítulo
cinqüenta e quatro, ilustra o desejo do Senhor Krishna em fazer uma conciliação entre
os princípios morais de justiça e misericórdia. Aqui está a seqüência deste passatempo.
RUKMI
10.54.31 Tendo raptado Rukmini, o Senhor Krishna prepara-Se para matar o
violento Rukmi.
10.54.32-33 Assustada, Rukmini roga para Krishna não matar seu irmão.
10.54.34 Rukmini desperta a compaixão de Krishna e Ele não mata Rukmi.
10.54.35 Krishna amarra Rukmi e caçoa-o cortando seu cabelo e bigode.
10.54.36-37 O Senhor Balarãma, sendo misericordioso, liberta Rukmi e puni
Krishna, acusando-O de fazer algo que é “asadhu” e “terrível para nós”, uma vez
que “desfigurar um parente é como matá-lo.”
10.54.38-50 Balarãma prega para Krishna e Rukmini.
Essa história claramente assemelha-se àquela de Asvatthama:
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A. Krishna primeiro prepara-Se para fazer justiça matando Rukmi, assim como
Krishna primeiro ordenou Arjuna a matar Asvatthama e trazer sua cabeça para
Draupadi.
B. Compadecida, Rukmini opõe-se a esta morte, assim como Draupadi opôs-se à
morte de Asvatthama.
C. Assim como com Asvatthama, Krishna toma um rumo intermediário,
matando simbolicamente por humilhação.
D. Balarãma apresenta uma quarta posição, as três primeiras sendo 1) Decisão de
Krishna pela morte de Rukmi; 2) Apelo de Rukmini pelo indulto de seu irmão; e
3) Decisão de Krishna em matar Rukmi simbolicamente. Balarãma pune Krishna
por matar simbolicamente um parente e em seguida censura Rukmini por seu
excessivo sentimento familiar.
E. Assim como na história anterior de Asvatthama, encontramos Krishna
determinado a fazer justiça, e, depois, conciliando a punição após um apelo de
um devoto por misericórdia.
Em ambas as histórias, de Asvatthama e Rukmi, encontramos a justiça
temperada pela misericórdia, resultando numa ação de justiça misericordiosa, a qual não
obedece aos estritos textos da lei.
2. DEVERES MORAIS CONFLITANTES
KUNTI E PANDU
Encontramos outro exemplo de tensão entre deveres morais rivais no
Mahabharata, numa conversa entre Pandu e sua esposa Kunti.
Amaldiçoado a nunca gerar uma criança, e, assim, incapaz de proporcionar um
herdeiro para o trono Kuru, Pandu roga à sua devotada esposa Kunti para gerar uma
criança com um pai substituto, um brahmana santo. Finalmente, é claro, Kunti revelará
que Durvasa abençoou-a com o poder de chamar os semideuses, e, assim, ela gerará três
filhos com, Dharma, Vayu e Indra. Mas, por enquanto, Pandu está tentando convencê-la
a obedecê-lo e gerar um filho com um brahmana santo. Entre seus argumentos, Pandu
declara:
“Ó filha do rei, conhecedores do dharma sabem que uma esposa deve fazer o
que o esposo diz, quer ele fale de acordo com o dharma ou mesmo se ele fala o que não
é dharma.” [MB 1.113.27] [1]
Pode-se ler esse verso e concluir que uma esposa deve sempre obedecer a seu
esposo, esteja este certo ou errado, uma vez que isto é o que Pandu declara. Entretanto,
logo no capítulo seguinte, após Kunti ter dado a Pandu três filhos, Pandu pede a Kunti
para chamar outro deus e gerar outro filho, embora Kunti firmemente recuse o pedido
de seu esposo e diga:

“Não se recomenda um quarto filho dessa forma, a não ser em tempos de
dificuldades. Com uma quarta criança, eu seria uma mulher incasta, com uma quinta,
me tornaria uma meretriz.” [MB 1.114.65]
Pandu claramente declarou que uma esposa deve obedecer a seu esposo, quer ele
esteja certo ou errado. Mas, na verdade, quando Kunti está certa, Pandu aceita seu
argumento e o segue, abandonando um princípio moral que ele acabara de declarar.
Kunti então chama os gêmeos Asvins para Madri, que gera assim Nakula e
Sahadeva. Mas quando Pandu pede ainda outro filho para Madri, Kunti recusa e
novamente Pandu acata os desejos de sua esposa.
Encontramos o mesmo padrão dialético de reivindicação moral e deveres,
repetidos aqui: um homem forte empenha-se em agir de um modo errado, reivindicando
tais atos serem justos. Uma respeitável senhora então insiste em uma conduta um tanto
diferente, e o homem retifica seu comportamento.
A FAMÍLIA BRAHMANA DE EKA-CAKRA
No Mahabharata, Adi Parva, capítulos 145-7, encontramos outro exemplo
notável de conflito moral. Na cidade de Ekacakra, onde os Pandavas vivem incógnitos
na casa de um a brahmana, um poderoso Raksasa chamado Baka aterroriza a cidade,
aproveitando-se do fraco e incompetente rei que rege aquela região. Em troca de sua
proteção, os cidadãos são forçados a suprir periodicamente o demônio com uma
carroçada de comida e um humano, selecionado a cada vez de uma das famílias da
cidade.
Kunti ouve sua família brahmana anfitriã ocupada em uma estranha e chorosa
discussão na qual todos, esposo, esposa, filha e filho, insistem em sacrificarem-se para
salvar a família, pois chegou a vez desta família alimentar o demônio. Finalmente, é
claro, Bhima mata o demônio, mas este incidente mostra claramente que na cultura
védica havia conflitos morais.
Por um lado, um homem deve proteger sua família, no entanto, se o pai se
entregasse ao demônio, a sociedade saquearia sua família desprotegida. A esposa achou
que seu dever era servir seu esposo sacrificando-se ao demônio, no entanto, como um
esposo poderia, tendo jurado proteger sua esposa, sacrificá-la ao demônio. Até mesmo a
filha queria salvar seus pais e seu pequeno irmão dando-se ao demônio.
O ponto chave aqui é que circunstâncias práticas apresentaram conflitos morais
aparentemente insolúveis para uma família boa, brahmínica e védica. O dever moral da
família não lhes era absolutamente claro, e eles não podiam concordar no que fazer, já
que cada ato moral possível parecia violar outro dever moral de igual importância.

3. IDEAL VS REAL
Outra tensão moral encontrada em toda sociedade surge da inevitável lacuna
entre ideal e real. A cultura védica ensina os mais elevados princípios morais e
espirituais, mas também engaja a natureza prática humana com uma notável franqueza e
realismo. Os princípios religiosos do dharma funcionam como princípios morais na
cultura Védica. E, quando estudamos a aplicação do dharma em textos como o
Bhagavatam e o Mahabharata, encontramos que, na grande maioria dos casos, o
dharma é usado para regular as duas mais apaixonadas, e assim mais perigosas,
atividades humanas: sexo e violência.
A fim de entender claramente a abordagem védica às questões morais, devemos
observar a maneira que a cultura védica lida com o sexo e a violência. Como declarado
acima, em virtude destas duas atividades gerarem a mais desenfreada paixão nos seres
humanos, são precisamente estas duas atividades que mais ameaçam a ordem moral e
espiritual na sociedade, e as quais, portanto, devem ser reguladas pelo dharma,
moralidade.
Para ilustrar a madura complexidade da abordagem védica às questões morais,
consideremos exemplos da abordagem védica à violência, na forma de caça, e, ao sexo,
na forma de poligamia. Perceberemos, em cada caso, que a cultura védica ensina
princípios morais ideais, no entanto, ao mesmo tempo, reconhece a real natureza
humana e cria um espaço cultural para pessoas sinceras que não podem praticar o ideal.
CAÇA
A caça a animais viola profundamente um dos mais sérios princípios morais
Védicos: ahimsa, não prejudicar o inocente. O Senhor Krishna menciona ahimsa quatro
vezes no Bhagavad-Gita [10.5, 13.8, 16.2, 17.14].
No 13.8, Krishna afirma que ahimsa, junto com outras qualidades, é
conhecimento, e que tudo mais é simplesmente ignorância. Assim, himsa, prejudicar o
inocente, é ignorância. No 18.25, Krishna declara que o trabalho empreendido sem
considerar a himsa, ou prejuízo ao inocente, resultante, é trabalho no modo escuridão.
Krishna também declara, no 18.27, que um trabalhador na paixão é himsatmaka, o que
Prabhupada traduz por “sempre invejoso”.
No 16.2, o Senhor Krishna declara que ahimsa é uma das qualidades divinas
para qual Arjuna nasceu. E, no 17.14, o Senhor diz que ahimsa é um componente
necessário à austeridade corpórea. O Bhagavatam glorifica, similarmente, a qualidade
moral de ahimsa:
O 1.18.22 declara que ahimsa é a verdadeira natureza da alma pura. O 3.28.4
prescreve que se deve praticar ahimsa. O 7.11.8 ensina que ahimsa e outras qualidades
são paro dharmah, o mais elevado princípio religioso.

Significativamente, o 11.17.21 sustenta que ahimsa é sarva-varnika, para todos
os varnas. E, no 11.19.33, Krishna, Ele próprio, ensina ahimsa.
Similarmente, o Mahabharata, 1.11.12, afirma que ahimsa é o supremo dharma
para todas os seres vivos.
Srila Prabhupada muitas vezes ensinou que ahimsa significa especialmente que
não se deve matar animais. Por exemplo, neste significado ao Bhagavad-Gita 16.2, ele
escreve:
“Ahimsa quer dizer não impedir a vida progressiva de nenhuma entidade viva.
Ninguém deve pensar que, como a centelha espiritual não morre mesmo após o corpo
ser morto, não há mal algum em obter gozo dos sentidos através da matança de animais.
Hoje em dia as pessoas estão habituadas a comer animais, apesar de terem um amplo
suprimento de cereais, frutas e leite. Não há necessidade de matar animais. Este preceito
é para todos. [ênfase minha] Quando não há alternativa, pode-se matar um animal, mas
ele deve ser oferecido em sacrifício. De qualquer forma, quando há um amplo
suprimento de alimento para a humanidade, aqueles que desejam progredir em
percepção espiritual não devem cometer violência contra os animais. A verdadeira
ahimsa quer dizer não impedir a vida progressiva de ninguém. Os animais também estão
progredindo em sua vida evolutiva, transmigrando de uma categoria de vida animal para
outra. Se determinado animal é morto, então seu progresso é interrompido. Logo,
ninguém deve interromper o progresso deles simplesmente para satisfazer o paladar.
Isto se chama ahimsa”.
Similarmente, em seu significado ao Srimad-Bhagavatam 1.3.24, ele declara:
“Não há justiça quando há matança de animais. O Senhor Buddha queria parar
com isto completamente, e por isso seu culto de ahimsa foi propagado não apenas na
Índia, mas também fora do país”.
No entanto, apesar dessas numerosas e pesadas declarações escriturais,
prescrevendo ahimsa e proibindo himsa, encontramos que os reis Védicos muitas vezes
caçavam. Prabhupada ensinou que os Ksatriyas, reis guerreiros responsáveis por
defender o povo, eram permitidos caçar com vistas a aprimorar suas habilidades com
armas. Entretanto, como Prabhupada ressalta em seu significado ao Bhagavatam
4.22.13, mesmo tal caça não era auspiciosa. Na verdade, era, ainda assim, considerado
um pecado. Prabhupada escreve:
“Os reis... às vezes, ocupam-se em matar animais na caça porque devem praticar
a arte da matança, caso contrário, ser-lhes-ia muito difícil lutar contra seus inimigos.
Semelhantes coisas não são auspiciosas. Quatro espécies de atividades pecaminosas –
associar-se com uma mulher para fazer sexo ilícito, comer carne, intoxicar-se e jogar –
são permitidas para os ksatriyas. Por razões políticas, às vezes, eles precisam praticar
estas atividades pecaminosas.”
Recorde que o Bhagavatam [11.17.21] diretamente declara que ahimsa é sarvavarnika,
para ser praticado por todos as ordens sociais, incluindo os ksatriyas. Na
verdade, o Bhagavatam mostra que mesmo os reis não estão isentos das reações
pecaminosas de matar animais. Assim, no 4.25.7-8, o grande Narada diz para o Rei
Barhisman:
“Ó Prajapati! Ó Rei! Veja os animais, coisas vivas que você cruelmente matou
aos milhares em sacrifício.
Esses animais estão esperando por você, lembrando sua carnificina. Quando
você tiver partido deste mundo, eles o fatiarão com chifres de ferro por você tê-los
enfurecido.”
Similarmente, o Bhagavatam afirma no 5.26.24 que mesmo os ksatriyas que
sentem prazer em caçar vão para o inferno conhecido como Pranarodha. Os comentários
de Prabhupada sobre este verso são como segue:
“Os homens pertencentes às classes superiores (brahmanas, ksatriyas e vaisyas)
devem cultivar conhecimento através do qual passem a saber o que é o Brahman, e
também devem dar aos sudras a oportunidade de chegar a essa plataforma. Se, ao
contrário, entregam-se à caça, recebem a punição descrita neste verso. Eles não apenas
são trespassados pelas flechas dos agentes de Yamaraja, como também são postos no
oceano de pus, urina e excremento, descrito no verso anterior.”
Como entendemos este paradoxo? Por um lado, as escrituras védicas não
poderiam ser mais claras em seu ensinamento de ahimsa, não prejudicar o inocente, e
sua condenação de himsa, prejudicar o inocente. Por outro lado, parece que uma
concessão especial é dada para os guerreiros caçarem. Entretanto, esta concessão é
problemática por várias razões:
1. O Shastra ensina que até mesmo reis são punidos por matar animais.
2. O Bhagavatam declara que todas as ordens sociais, incluindo guerreiros,
devem praticar ahimsa.
3. A história Védica ensina a poderosa lição de que muitos dos maiores reis
Védicos sofreram trágicos destinos enquanto caçavam. Exaltados reis tais como
Dasaratha, Pandu e Pariksit, também enfrentaram desastres enquanto caçavam. E
o meio-irmão de Dhruva, Uttama, foi assassinado numa expedição de caça. Não
há equivoco de que tais lições históricas desencorajam a caça.
É justo concluir que a cultura védica encontra aqui um ponto de equilíbrio entre
o ideal e o real. O ideal é claramente ahimsa. O “real”, entretanto, é que ao longo da
história registrada por todo o mundo, guerreiros caçam. E, ao longo da história, nós
verificamos que guerreiros de fato não limitam sua caça ao mínimo necessário para
aprimorar suas habilidades essenciais como protetores da humanidade.
Desse modo, encontramos a seguinte estratégia moral apropriada:
1. O ideal é prescrito.
2. Aquilo que viola o ideal é proibido.
3. Uma concessão é feita para aqueles que simplesmente não podem ou não
seguirão o ideal.
4. Aqueles que recebem essa concessão, não obstante, são aceitos dentro da
sociedade.
5. Os perigos e repercussões em aceitar esta concessão são claramente indicados.
Eu ressaltei anteriormente que dharma, moralidade, enfoca especialmente as
duas mais perigosas paixões humanas: sexo e violência. Em seu significado ao
Bhagavatam 4.26.4, o qual descreve como o Rei Puranjana saiu para caçar animais,
Srila Prabhupada relaciona caça com luxúria.
“Uma forma de caça é conhecida como caça às mulheres. Uma alma
condicionada nunca fica satisfeita com uma só esposa. Aqueles cujos sentidos estão
demasiado descontrolados tentam especialmente caçar mulheres. O fato de o rei
Puranjana ter abandonado a companhia de sua mulher religiosamente desposada
representa a tentativa da alma condicionada de caçar muitas mulheres, visando ao gozo
dos sentidos.”
Há uma clara similaridade entre caçar e promiscuidade sexual, por ambas serem
tentativas de desfrutar o corpo físico de outra alma, com pouca ou nenhuma
consideração pelo bem estar último desta outra alma. Assim, não é surpreendente que
nós encontremos uma abordagem moral Védica para a promiscuidade sexual que se
parece com a abordagem à caça.
Observemos brevemente a prática védica da poligamia, a qual foi praticada
especialmente entre os reis guerreiros. A palavra sânscrita sapatni significa “co-esposa”.
Uma outra palavra sânscrita, diretamente derivada desta, é sapatna, “inimigo”. Não é
por acaso que, da palavra sânscrita para “co-esposa”, nós temos a palavra sânscrita para
“rival, adversário e inimigo”.
Assim, no Bhagavad-Gita 11.34, o Senhor Krishna diz a Arjuna, “Você
conquistará seus inimigos na batalha.” A palavra para “inimigos” é sapatna, derivada de
sapatni, “co-esposa”.
Similarmente no Bhagavatam nós encontramos várias vezes a palavra sapatna
traduzida como “inimigo”. Alguns exemplos são encontrados em 1.14.9, 3.18.4, 5.1.18,
5.1.19, 5.11.15, 7.2.6, 8.17.10, 10.49.10, 11.1.2, e 11.16.6.
Similarmente, no 5.1.17, Prabhupada traduz o termo shat-sapatna, “os seis
inimigos” (a mente e os sentidos), como “seis co-esposas”. No 8.10.6, Prabhupada
traduz o termo sapatna como “inimigos violentos”.
Adicionalmente, nós temos evidências históricas de que mesmo nas melhores
famílias Védicas a poligamia podia levar a sérios problemas. Na história de Citraketu,
encontramos no 6.14.42 que suas co-esposas arderam-se de inveja de uma esposa que
lhe gerou um filho. Por conseguinte, no 6.14.43, as co-esposas matam o filho único do
rei.
A rainha Kaikeyi, temendo que o filho de sua co-esposa suprimisse seu próprio
filho, ocasionou o banimento do Senhor Rãma à floresta, contra os desejos de seu
próprio esposo, e, na verdade, de todo o reino.
Afora isso, numerosos versos Védicos ensinam os males da luxúria e exaltam as
virtudes da restrição sexual. Foi nestes fundamentos que Prabhupada rejeitou a
poligamia na ISKCON. Prabhupada ensinou que a poligamia remediou o desequilíbrio
entre a população masculina e feminina na sociedade humana, e os reis eram
freqüentemente poligâmicos, embora encontremos que a poligamia muitas vezes
conduziu a problemas. De fato, da palavra “co-esposa”, sapatni, vem a palavra sapatna,
a qual indica severa disputa entre inimigos.
A história do mundo ensina que os guerreiros e governantes do começo dos
tempos procuraram desfrutar muitas mulheres. Uma proibição absoluta da caça, ou de
múltiplos parceiros sexuais, entre os governantes, somente conduziria à difusão da
hipocrisia, o que debilitaria seriamente a força da lei e escritura Védicas. Para evitar
isso, a cultura védica ensina o ideal e, dentro de limites apropriados, acomoda o real.
Essa acomodação, freqüentemente implica conectar uma atividade desfavorável,
porém inevitável, a algum benefício social. Caçar é ruim, mas isto alcança um propósito
social bom por treinar os reis a protegerem o inocente, mesmo que eles matem outras
criaturas inocentes. Indulgência sexual é ruim, mas a poligamia alcança o bem social de
proteger as mulheres que, de outra maneira, podem não encontrar esposos.
A poligamia e a caça são questões morais claramente diferentes, embora, em
alguns aspectos, elas sejam similares: Prabhupada ressaltou a relação geral entre caça e
luxúria. E, em ambos os casos, a cultura Védica simultaneamente ensina as vantagens
morais e espirituais da restrição, mas também dá algum espaço, sob certas condições,
somente para em seguida contar histórias que ilustram os problemas encontrados dentro
deste espaço concedido. Tanto a caça, quanto a poligamia, ilustram o método pelo qual
a cultura védica tenta lidar com a inevitável tensão entre o ideal e o real.
Encontramos um outro exemplo de uma estratégia realista para lidar com o
desejo humano por sexo dentro da própria ISKCON. No Bhagavad-Gita 9.27, o Senhor
Krishna ensina claramente que nós devemos executar todos os atos como uma oferenda
a Ele. Krishna também declara no 7.11 que Ele está presente na sexualidade que não se
opõe ao dharma, moralidade. Srila Prabhupada explicou repetidamente que os devotos
oferecem suas vidas sexuais a Krishna procriando crianças conscientes de Krishna.
Assim, num senso estrito, todos os devotos iniciados devem prometer abandonar o sexo
ilícito, i.e. o sexo que não é para a procriação.
Isto é o ideal, entretanto, não é o real. A situação real na ISKCON é que muitos,
realmente muitos, chefes de família seguem o mais fácil, a versão menos ideal da regra:
não praticar sexo fora do casamento. O próprio Prabhupada, algumas vezes, ensinou
tanto o ideal quanto, em muitas outras, a versão “real” dessa regra, a versão que eles
podem realmente seguir.
Não pode absolutamente haver dúvidas de que, em última análise, um devoto
consciente de Krishna deve abandonar o sexo não destinado à procriação. E não pode
absolutamente haver dúvidas de que um número muito grande de chefes de família da
ISKCON não são capazes de seguir essa regra sempre. Aqui, novamente, encontramos a
cultura Védica, através do intermédio da ISKCON, ensinando o ideal e acomodando o
real. A suposição em todos estes casos é que, as pessoas que, de um modo ou de outro,
permanecem sob o abrigo da cultura Védica se elevarão finalmente à plataforma ideal.
Assim, a cultura védica sempre procurou manter sob seu abrigo almas sinceras que
estão fazendo seu melhor para adotar valores mais elevados, mesmo quando essas almas
estão situadas bem abaixo do padrão ideal.
UM DRAMÁTICO EXEMPLO FINAL ILUSTRA ESSE PRINCÍPIO.
No Sri Caitanya Caritamrta, 2.24.230-258, Narada narra a história de Mrgari, o
caçador, a qual demonstra claramente o princípio moral Védico de escolher dos males
morais o menor . Aqui está uma passagem dessa história:
Narada disse: “Só te peço uma coisa em caridade. Peço-te que de hoje em diante
mate os animais completamente, em vez de os deixares semimortos.”
O caçador retrucou: “Ilustre cavalheiro, que me pedes? Que vês de errado no
fato de os animais ficarem por aí estirados no chão, moribundos? Poderias, por favor,
explicar-me isso?”
Narada redargüiu: “Se deixas os animais moribundos, causas a eles dor
propositadamente. Portanto, terás que sofrer a represália. Tua ocupação é matar animais.
Esta é uma pequena ofensa de tua parte, mas, quando deliberadamente causas a eles dor
desnecessária, deixando-os moribundos, cometes pecados muito grandes. Os animais
por ti mortos e a quem causastes dor desnecessária, todos eles, sem exceção, matar-te-ão
seguidamente em tua próxima vida e vida após vida.” [CC 2.24.247-251]
Narada, aqui, incontestavelmente introduz outro princípio moral Védico: a
gravidade de um pecado é relativa, e é medida em relação ao status e à consciência do
pecador. Assim, Narada diz explicitamente,
“Você é um caçador. Ao matar, seu pecado é pequeno. Ao perversamente causar
sofrimento, seu pecado é sem limites.”
Devemos observar aqui o seguinte:
1. As escrituras védicas ensinam que matar animais inocentes é de fato um
pecado. Mas, porque Mrgari era um caçador, sua ofensa era alpa, “pequena”. O
pecado é relativo ao pecador.
2. Em comparação a essa “pequena” ofensa, causar sofrimento
desnecessariamente e conscientemente é chamado de um “mal ilimitado”.
3. Narada persuade Mrgari ao menor dos males.
4. Seguindo o método acima, Narada enfim trás Mrgari à consciência de Krsna
pura.
4. ATOS E CONSEQÜÊNCIAS
Afora as inevitáveis tensões morais entre justiça e misericórdia, e entre o ideal e
o real, podemos observar ainda nas escrituras Védicas duas filosofias morais distintas,
uma moralidade fundamentalmente no ato em si, e a outra buscando a moralidade
fundamentalmente nas conseqüências dos atos. Ambas as visões são bem conhecidas
para os filósofos ocidentais pelos nomes de ética deontológica e conseqüêncialismo.
A primeira, a ética deontológica, em linhas gerais argumenta que o
comportamento moral depende do ato em si, independentemente das conseqüências. A
segunda, o conseqüêncialismo, argumenta que o comportamento moral deve produzir
boas conseqüências.
Encontramos exemplos de ambas as filosofias morais na vida da grande alma
Bhishma, que, em sua juventude, manifestou uma preocupação fundamental de que o
ato em si seja moral, mas que, em sua velhice madura, claramente percebeu a
importância moral das conseqüências.
BHISHMA JOVEM
No Mahabharata, a morte do rei jovem e sem filhos, Vicitravirya, filho de
Satyavati e Santanu, deixou a dinastia Kuru sem um governante. Nesta precária
situação, os inimigos políticos dos Kurus começaram a roubar suas terras.
Em desespero, a Rainha Mãe Satyavati persuadiu Bhishma a casar-se com as
viúvas de Vicitravirya e governar o reino. Bhishma inflexivelmente recusou com estas
palavras:
“Sem dúvida, mãe, você declarou o dharma mais elevado. [Mas] Você também
conhece meu voto mais elevado com relação à progênie. E você está ciente do que
aconteceu quando devia ser pago o seu preço de noiva.
Mais uma vez, Satyavati, faço o mesmo voto a você. Eu posso renunciar a
soberania sobre os três mundos, ou ainda entre os deuses, ou o que quer que seja maior
que isto, mas de forma alguma eu posso abandonar meu voto.
A terra pode abandonar a fragrância, e a água seu sabor. Do mesmo modo, a luz
pode abandonar a forma, o ar a qualidade do toque, o sol sua luz e o fogo fumegante seu
calor, o éter pode abandonar o som, a lua pode abandonar a frieza de seus raios, Indra,
assassino de Vritra, pode renunciar sua coragem, o rei do dharma pode abandonar o
dharma, mas eu jamais, de forma alguma, decidirei abandonar a verdade.” [MB 1.97.13-
18]
Essa fala é admirável, mas também revela uma falta de interesse quanto às
conseqüências. Em um sentido, Bhisma afirma aqui que, mesmo se o universo fosse
colapsar, ele não abandonaria seu voto. As conseqüências não importam. Tudo o que
importa é a integridade de um ato em si mesmo, neste caso, o ato de se manter um voto.
A fala de Bhishma ilustra uma abordagem distinta de moralidade: o ato em si
deve ser moral, sem considerar as conseqüências. Embora Bhishma finalmente sugira a
Satyavati, como Pandu sugeriu a Kunti, que um brahmana qualificado seja solicitado a
gerar filhos em rainhas enviuvadas, Bhishma já deixou claro que, indiferente à
quaisquer possíveis conseqüências, ele não quebrará seu voto. Afinal de contas, se ele
tivesse aceitado a proposta de Satyavati, de casar-se e governar o reino, neste caso ele
teria falado falsamente ao pai de Satyavati, que a deu como noiva ao pai de Bhishma
somente sob a condição de Bhishma nunca se casar.
Há, entretanto, uma outra abordagem à moralidade na qual a preocupação
fundamental é com as conseqüências de um ato. O mais famoso proponente desta
abordagem pragmática é o próprio Krishna, é claro. De fato, Krishna ensina a filosofia
moral pragmática ao próprio Bhishma na Batalha de Kurukshetra. Encontramos nesse
caso, nos ensinamentos do leito de morte de Bhishma, que o grande avô Kuru aprendeu
bem a lição sobre filosofia moral do Senhor Krishna.
BHISHMA EM KURUKSETRA
Tanto o Mahabharata, quanto o Bhagavatam, revelam que no Campo de Batalha
de Kurukshetra o Senhor Krishna abandonou Seu voto de não lutar, a fim de proteger
Seu devoto Arjuna.
No Bhagavatam 1.9.37, o moribundo Bhishma recorda,
“Abandonando seu voto sagrado, Ele [Krishna] desceu da quadriga para tornar
minha promessa uma verdade ainda maior.”
No Mahabharata 6.102.66, numa famosa cena, Arjuna agarra as pernas de
Krishna, que está correndo para matar Bhishma, e roga a Krishna como segue,
“Pare ó pessoa de braços poderosos! Ó Keshava, anteriormente Você disse ‘Eu
não lutarei’, e Você não deveria tornar falsas Suas palavras. Ó Madhava, o mundo dirá
que Você falou falsamente e toda essa responsabilidade certamente cairá sobre mim.
Devo matar Bhishma, o de voto fixo.”
Embora Krishna ceda, Ele estava claramente pronto a quebrar Seu voto para
produzir as conseqüências necessárias.
Similarmente, no Drona Parva do Mahabharata [7.164.68], Krishna diz a
Yudhisthira,
“Ó Pandava, pondo de lado o dharma, faça o que é prático pela vitória para que
Drona, da carruagem dourada, não mate a todos vocês na batalha.”
Posteriormente, na mesma cena, Krishna diz a Yudhisthira, “Você mesmo salve-nos de Drona. A inverdade [neste caso] é melhor que a verdade. As mentiras não poluem a quem as está falando quando a vida está em risco.”

APARÊNCIA E INTENÇÃO
No Karna-parva do Mahabharata, o Senhor Krishna conta a Arjuna duas
histórias para dramaticamente ilustrar que a verdadeira piedade não pode sempre ser
julgada por atos externos, mas, às vezes, preferivelmente pelas conseqüências destes
atos. A primeira história descreve um homem aparentemente pecaminoso que foi para o
céu, a segunda, narra o oposto: um sábio “religioso” que foi para o inferno. Em ambas
as histórias, o que mais importa não é o fato em si, mas, antes, as conseqüências do ato.
Aqui estão as histórias:
Krishna disse: “Havia um caçador de animais chamado Balaka que matava
animais para sustentar suas crianças e esposa, não por seu próprio desejo. Ele também
sustentava sua mãe cega, pai e outros dependentes. Sempre dedicado ao seu dever, ele
falava a verdade e não invejava.
Um dia, embora buscando presas com muito empenho, ele não encontrava
nenhuma. Então ele viu um bicho selvagem bebendo água e usando seu focinho como
olhos. Embora ele nunca tivesse visto uma criatura daquele jeito antes, ele a matou
imediatamente. Logo após isso, uma chuva de flores caiu do céu. E, do céu, veio um
aeroplano encantado ressonante com as canções das Apsaras e dos instrumentos
musicais, desejando levar embora [para o céu] aquele caçador de animais.
A criatura [morta] tinha executado austeridades e obtido uma benção, Arjuna, de
destruir todas as criaturas e, portanto, Svayambhu cegou-a. Tendo matado quem estava
decidida a destruir todas as criaturas, Balaka então foi para o céu. Portanto, é muito
difícil compreender o dharma.
Pois bem, havia um brahmana chamado Kaushika, não muito versado nas
escrituras, que morava [na floresta] na confluência de vários rios, não distante de uma
aldeia.
‘Devo sempre falar a verdade!’ Esse se tornou seu voto. Ó Dhananjaya, por isso
ele tornou-se famoso como um falante da verdade. Então, algumas pessoas entraram
naquela floresta temendo assaltantes. Na verdade, os cruéis assaltantes os seguiram
procurando-os diligentemente. Sabendo que Kaushika falava a verdade, os assaltantes
aproximaram-se dele e disseram, ‘Por qual caminho, senhor, todas aquelas pessoas
foram? Nós queremos a verdade. Fale se você sabe onde eles estão. Diga-nos!’
Assim questionado, Kaushika disse-lhes a verdade: ‘Eles estão escondidos
naquele bosque cheio de árvores, trepadeiras e arbustos.’ Então os assaltantes os
encontraram e os mataram cruelmente. Assim foi falado pelas autoridades. Por causa deste grande adharma de falar prejudicialmente, Kaushika foi para um inferno muito penoso por não ter compreendido os princípios sutis da moralidade. Seus estudos eram insuficientes, ele era tolo e não conhecia as divisões do dharma.” [MB 8.49.34-46, Ganguli 8.9.70]. O próprio Krishna explica então a Arjuna o significado dessas duas histórias:
“É difícil alcançar o mais elevado entendimento [da moralidade]. Verifica-se isso pelo raciocínio. Nessas circunstâncias, há muitas pessoas que simplesmente alegam que ‘a moralidade é escritura’. Embora Eu não Me oponha a esta visão, as escrituras não oferecem regras para todo caso”.
Essa declaração é a mais importante. Precisamente por causa das complexidades
da vida – as tensões entre justiça e misericórdia, o ideal e o real, o ato e sua
conseqüência, necessidades individuais e necessidades da sociedade – a moralidade,
dharma, nunca pode ser reduzida a uma lista de regras. O Senhor não Se opõe à noção de que as regras das escrituras governam a moralidade, entretanto, as regras por si mesmas não são suficientes. Deve-se analisar racionalmente os casos individuais e deve-se compreender as sutilezas da vida real. A falha moral, a qual conduziu-o a um inferno muito penoso, foi seu fracasso em compreender os “princípios sutis da moralidade”. Não se pode compreender as sutilezas da moralidade, a menos que se entenda o propósito da moralidade. Nesta mesma passagem do Mahabharata, o Senhor Krishna explica este propósito:
“A moralidade é ensinada para o progresso dos seres vivos. A moralidade [dharma] deriva-se do ato de manter [dharana]. Dessa maneira, as autoridades dizem que a moralidade [dharma] é aquilo que mantém os seres vivos. A conclusão é que, tudo aquilo que mantém é verdadeiramente dharma.” [MB 8.49.48-50]
Assim, embora Balaka fosse um caçador, sua intenção era sustentar sua família. Ele não era, em última análise, uma má pessoa, mas ele se encontrava numa situação indesejável. Similarmente, Narada disse a Mrgari, “Porque você é um caçador, para você matar animais é uma ofensa insignificante.” Os atos de Balaka eram abomináveis, mas sua intenção não era.
Em contraste, o ato de Kaushika foi superficialmente moral: ele disse a verdade. Porém, ao assim fazer, ele prejudicou outras pessoas. Ele colocou uma “moralidade” acima do bem real dos outros, não compreendendo que a moralidade só se caracteriza como tal quando beneficia os outros. Nós já vimos, no caso de Mrgari e Balaka, que a moralidade é relativa à situação de uma pessoa. No caso de Kaushika, o Senhor Krishna estabeleceu mais um princípio atenuante: a moralidade é relativa às circunstâncias.

Assim, o Senhor Krishna declara:
“Sempre que as pessoas tentarem injustamente roubar alguém, se essa pessoa
puder se livrar sem proferir um só som, então nenhum som deverá ser proferido. Ou, deve-se proferir necessariamente um som caso os assaltantes desconfiem do silêncio.
Nessa situação, considera-se melhor falar uma mentira a falar a verdade.” [MB 8.49.51-
52]

BHISHMA MADURO

Nos ensinamentos de Bhishma, falados de uma cama de flechas (Mahabharata,
Shanti-parva), encontramos que a poderosa lição de moral de Krishna – de que as conseqüências de fato importam, às vezes, mais do que o ato em si – não foi desperdiçada por Bhishma. O moribundo Bhishma fala sobre satyam, verdade, de um modo muito mais complexo e cheio de nuances do que ele fez em sua juventude. Ele está agora extremamente preocupado com as conseqüências, mais do que com o ato em si. E ele entende que em assuntos morais as aparências podem ser enganosas, uma lição que ele tirou das duas histórias de Krishna, do caçador Balaka e do brahmana Kausika. Veremos ainda Bhishma, no final de sua vida, repetir e parafrasear a linguagem
explícita de Krishna sobre este tópico.

Enquanto Bhishma estava deitado na cama de flechas, Yudhisthira perguntou
sobre moralidade (dharma). Significativamente, a verdade sobre a moralidade não era
óbvia mesmo para o rei da moralidade, Yudhisthira. Aqui está a conversa deles:

Yudhisthira disse:
“Como deveria se comportar uma pessoa que quer basear-se em princípios
morais? Eu procuro compreender isso, ó sábio, portanto, bondosamente explique, ó
melhor dos Bharatas.

Tanto a verdade quanto a falsidade existem cobrindo os mundos. Das duas, ó rei, qual deveria uma pessoa dedicada à moralidade praticar? O que é realmente verdade, o que é falsidade e qual é realmente o princípio moral eterno?”

Bhishma disse:
“Falar a verdade é virtuoso. Nada é mais elevado do que a verdade. Ó Bharata, eu falarei para você aquilo que é muito difícil de entender em Bhuloka. A verdade não deve ser falada e a falsidade deve ser falada num caso onde a falsidade torna-se verdade e verdade torna-se falsidade. Uma pessoa imatura é confundida em tal caso, onde a verdade não é firmemente estabelecida. Determinando verdade e falsidade, conhece-se então a moralidade.

Mesmo um não-ariano, carente de sabedoria, decerto um homem violento, pode alcançar grande compaixão, como Balaka alcançou matando o bicho cego. E o que é surpreendente quando um tolo, desejando moralidade, mas não a reconhecendo, comete um pecado realmente grande, como Kaushika no Ganges?

Tal questão, como esta que se refere a onde a moralidade deve ser procurada, é
muito difícil de responder. É difícil de avaliar; portanto, neste assunto, deve-se resolver a questão pelo raciocínio. Moralidade é aquilo que evita prejuízo para os seres vivos. Esta é a conclusão.

A moralidade (dharma) vem do ato de manter (dharana). Assim, as autoridades dizem que a moralidade mantém os seres vivos. Desta forma, aquilo que proporciona tal manutenção é dharma. Esta é a conclusão.

Certamente, algumas pessoas dizem, ‘a Moralidade é escritura’, enquanto outras
negam isso. Eu não nego, mas na verdade as escrituras não dão regras para todos os
casos. Sempre que as pessoas tentarem injustamente roubar a propriedade de alguém, não deve-se revelar para eles. Isto é verdadeiramente dharma . Se uma pessoa pode se
livrar sem proferir um único som, então nenhum som deve ser proferido. Ou, dever-seia
necessariamente proferir um som caso os assaltantes suspeitem do silêncio. Nesta
situação, é considerado melhor falar uma mentira a falar a verdade. Aquele que assim
age é eximido dos pecados de cometer um perjúrio.”

Aqui Bhishma repete os pontos básicos da filosofia moral Védica ensinada pelo próprio
Krishna:
1. Para entender o que é comportamento moral, não podemos, em cada caso,
simplesmente citar as regras morais das escrituras.
2. Deve-se também raciocinar sobre moralidade.
3. Em tal raciocínio, deve-se levar em consideração que todo o propósito dos
princípios morais é beneficiar as pessoas.
4. Às vezes, pessoas boas, externamente, praticam más ações.
5. Às vezes, pessoas más, externamente, praticam boas ações.
6. Em tais casos, deve-se olhar para além das aparências para ver o que
realmente produz boas conseqüências.

TENSÃO ENTRE SOCIEDADE E INDIVÍDUO
Ao avaliar as boas e as más conseqüências de um ato, deve-se considerar tanto o
indivíduo quanto a sociedade. Há uma tensão natural, e equilíbrio, na vida humana entre
liberdade individual e responsabilidade social. Srila Prabhupada insistiu para todos nós
trabalharmos cooperativamente dentro da ISKCON, e ao mesmo tempo ele lutava contra
a centralização e a burocratização precisamente porque elas reprimem a liberdade
individual, inspiração e criatividade, tudo o que é essencial na vida espiritual.
Prabhupada assim escreve em seu significado ao Bhagavatam 1.6.37,
"Todo ser vivo está ansioso por completa liberdade porque esta é sua natureza
transcendental. ...Uma alma autônoma e plenamente capaz de voar como Narada,
sempre ocupada em cantar as glórias do Senhor, é livre para movimentar-se não apenas
na Terra, como também em qualquer parte do universo, bem como em qualquer parte do
céu espiritual... De modo semelhante,... em todas as esferas do serviço devocional, a
liberdade é o pivô principal. Sem liberdade não há execução de serviço devocional. A
liberdade rendida ao Senhor não significa que o devoto torna-se dependente sob todos
os aspectos. Render-se ao Senhor através do meio transparente do mestre espiritual é
alcançar a completa liberdade da vida.”

No entanto, temos irrevogáveis obrigações para com a sociedade, especialmente
para com a sociedade espiritual criada por Srila Prabhupada. Em geral, quando se
decide não viver solitário, mas sim viver dentro da sociedade e assim desfrutar os
benefícios que a sociedade oferece, entra-se em um tipo de contrato social e se paga um
preço pelos benefícios que se recebe. Para viver dentro da sociedade, e desfrutar de suas
oportunidades e benefícios, se sacrifica a liberdade irrestrita da vida fora da sociedade.
O indivíduo dentro da sociedade aprende que tudo que é natural para um indivíduo pode
não ser natural para a sociedade. E o que é inatural para um indivíduo pode não ser
inatural para a sociedade.
Porque devemos depender da sociedade, mesmo enquanto ansiamos por
liberdade, haverá sempre algum nível de tensão entre os desejos e expectativas
individuais e os desejos e necessidades da sociedade na qual o indivíduo vive. Uma
sociedade consciente de Krishna deveria buscar um equilíbrio saudável entre as
necessidades sociais e individuais, para que tanto o indivíduo, quanto a sociedade,
possam alcançar seus objetivos sem prejudicar significativamente o outro.
Sobre este ponto, retornemos a nossa discussão sobre a tensão entre o ideal e o
real dentro do contexto do indivíduo e da sociedade. Por um lado, uma sociedade
consciente de Krishna deve preservar ideais espirituais eternos: o objetivo de cada vida
é aproximar-se de Krishna, o Senhor Supremo. Cada corpo humano pertence a Krishna
e deveria ser usado exclusivamente a Seu serviço de acordo com o sanatana dharma, os
princípios espirituais eternos estabelecidos pelo próprio Senhor. Uma sociedade
consciente de Krishna elogia e critica, recompensa e pune, encoraja e desencoraja o
comportamento de seus membros a medida que tal comportamento mantém ou viola os
ideais da sociedade.
Por outro lado, toda sociedade funcional deve criar espaço cultural e social para
os membros sinceros que, inevitavelmente, lutam com a realidade extremamente
imperfeita da vida condicionada. A sociedade deve compreender que pessoas boas e
sinceras muitas vezes falham em cumprir os ideais da sociedade e que a sociedade, em
última análise, existe para encorajar e facilitar a luta da alma por consciência de Krsna.
Para ser prático, a sociedade deve ainda distinguir entre comportamento público
e privado, reforçar padrões mais elevados para o primeiro, enquanto responde ao último
sempre que tal resposta for apropriada, relevante e necessária. Uma sociedade
consciente de Krishna deve levar em consideração que as almas condicionadas seguem
os ideais espirituais apenas parcialmente e imperfeitamente. Portanto, para aqueles não são muito avançados na vida espiritual, o progresso em direção ao ideal freqüentemente
envolve concessões avaliadas de acordo com os impulsos irreprimíveis e necessidades
do corpo material.
O indivíduo também não deve tomar a sociedade por padrões impossíveis, ideais. Assim como o indivíduo geralmente falhará em cumprir os ideais da sociedade, da mesma forma, a sociedade muitas vezes falhará em cumprir as expectativas do indivíduo em relação a ela. Deste modo, uma sociedade intolerante deve, em última análise, tornar-se ela mesma uma vítima da intolerância de seus membros para com as inevitáveis falhas desta mesma sociedade.

ESCRITURAS E HOMOSSEXUALIDADE
Anteriormente, ouvimos a declaração do Senhor Krishna no Mahabharata que:
“É difícil alcançar o mais elevado entendimento [da moralidade]. Verifica-se isso pelo raciocínio. Nessas circunstâncias, há muitas pessoas que simplesmente alegam que ‘a moralidade é escritura’. Embora Eu não Me oponha a essa visão, as escrituras não oferecem regras para todo caso”.

Assim, ao tentar entender como a ISKCON deveria lidar com a homossexualidade, devemos primeiro fazer esta pergunta:

Fornecem as escrituras védicas vaishnavas regras específicas e explicitamente não-ambíguas para lidar com a homossexualidade, ou, se não, devemos chegar a uma conclusão através de nossa própria maneira de raciocinar? Srila Prabhupada ensinou que devemos entender a ciência espiritual através de guru, sadhu e shastra, “o prórprio guru, outras pessoas santas e as escrituras reveladas”.

Srila Prabhupada também ensinou incessantemente que sua própria qualificação fundamental, e de fato a qualificação de qualquer guru fidedigno, é sempre repetir fielmente os ensinamentos de Krishna como são encontrados nas escrituras reveladas. Deste modo, devemos pesquisar nas mais importantes escrituras vaishnavas apresentadas por Srila Prabhupada, o Bhagavad-Gita e o Srimad-Bhagavatam, por declarações escriturais específicas, explícitas e não-ambíguas sobre homossexualidade.

O resultado? Não há nenhuma. Notavelmente, nem o Gita, tampouco o Bhagavatam, dão uma única referência explícita à homossexualidade mutuamente consensual. Encontramos, é claro, no Bhagavatam, 3.20.23-37, a bem conhecida história em que Brahma cria os demônios masculinos, que, em seguida, tentam aproximar-se dele para fazer sexo. Brahma escapa dos demônios abandonando o corpo ao controle de Vishnu. Prabhupada comenta em seu significado ao 3.20.26:

“Aqui subentende-se que o apetite homossexual de um macho por outro surgiu neste episódio da criação dos demônios por Brahma.” Podemos observar os seguintes pontos a respeito dessa história do Bhagavatam:

1. A história não descreve homossexualidade mutuamente consensual, uma vez
que Brahma evitou os demônios luxuriosos.
2. A história não dá nenhuma regra, injunção ou proibição a respeito da
homossexualidade. Na verdade, a exata palavra homossexualidade não aparece
no Bhagavatam.
3. Não está claro, a partir da história original do Bhagavatam, que os demônios
eram verdadeiramente homossexuais. Explicarei esse último ponto em mais
detalhes.

Através de um estudo minucioso dessa história, encontramos que, na verdade, os
demônios que se aproximaram de Brahma eram, no máximo, bissexuais, e que mesmo
essa bissexualidade é bastante ambígua. Primeiramente resumirei a história básica para,
em seguida, discutir suas complexidades.
Esta é a história básica:

1. De suas nádegas, Brahma cria seres “malignos” muito luxuriosos que se aproximam dele para fazer sexo.
2. Brahma fica inicialmente entretido, depois furioso e por fim aterrorizado. À medida que os demônios desavergonhados perseguem-no, ele foge.
3. Brahma toma abrigo de Vishnu e roga ao Senhor que o proteja.
4. Vishnu vê a condição infame de Brahma e ordena-o a abandonar seu corpo “terrível”.
5. Brahma abandona seu corpo. Os demônios vêm o corpo como uma mulher deslumbrante. Completamente encantados, eles aproximam-se do “sexo feminino” e tentam obter seu favor.
6. Os demônios então tomam o crepúsculo por uma bela mulher e, com luxúria e desordem, apoderam-se dela.

É importante levar em consideração que este incidente ocorre dentro de uma narração padrão da criação, na qual Brahma cria vários tipos de seres, e então dá, para cada um, um de seus corpos. Os malignos demônios que perseguiram Brahma para fazer sexo estavam aparentemente atraídos pela parte específica de seu corpo que manifesta beleza feminina. Tanto no próprio texto do Bhagavatam quanto nos comentários dos grandes Acaryas, encontramos evidências de que estes demônios eram na verdade luxuriosos por mulheres:

a) em seus comentários a este incidente, três grandes comentadores –
Sridhara Swami, Vira Raghavacarya e Visvanatha Cakravarti Thakur, todos descrevem estes demônios como stri-lampata, “luxuriosos por mulheres”. Deste modo, quando o Bhagavatam primeiro menciona este incidente e descreve os demônios como atilolupan, “excessivamente luxuriosos,” Sridhara Swami declara que esta luxúria era por mulheres.
b) O próprio Vishnu, no 3.20.28, ordena Brahma a abandonar seu “terrível corpo”. [16] Sridhara Swami explica que o corpo de Brahma era “terrível”, ghoram, porque era contaminado pela luxúria”. O Acarya Vira Raghava concorda que o corpo de Brahma era terrível porque era a forma da “luxúria excessiva”.
c) Sridhara Swami também explica em seu comentário ao 3.20.28 que “em todos os casos, abandonar um corpo significa dizer, abandonar uma disposição mental particular. Portanto, deve-se perceber que a palavra ca, “e” [indica neste verso] que Brahma teve que retificar cada uma destas condições mentais.”
d) o Bhagavatam também declara no 3.20.31 que, ao ver o corpo abandonado por Brahma na forma de um bela mulher, “todos os demônios ficaram completamente encantados.”

Em conclusão, não há dúvida de que todos os malignos demônios criados por Brahma sentiam extrema luxúria por mulheres. Surge uma questão sobre se eles aproximaram-se de Brahma de um modo diretamente homossexual, ou se eles estavam atraídos pelo aspecto feminino do corpo cósmico de Brahma, uma vez que Brahma abandonou para eles um corpo na forma de uma bela mulher. Levando em consideração que o próprio Bhagavatam declara no 3.20.53 que Brahma deu-lhes uma “parte”, amsha, de seu corpo, e que Sridhara Swami declara que esta parte era, na verdade, um aspecto da disposição mental de Brahma, especificamente a disposição de luxúria. Deste modo, de acordo com o Bhagavatam e Sridhara Swami, os demônios lançaram-se luxuriosamente em direção a Brahma, que parecia ter-lhes dado o que queriam: uma bela mulher. Portanto, está claro que os demônios tinham um forte apetite heterossexual, bem como uma atração ambígua pelo aspecto feminino luxurioso do Senhor Brahma. Portanto, essa história não fornece uma consideração clara e não-ambígua sobre a homossexualidade, nem nenhuma regra para lidar com isto.

Encontramos um tipo de irregularidade de gênero na vida do Rei Sudyumna, a qual é narrada no Bhagavatam, nono canto. Aqui está a história básica:

Ao entrar na floresta do Senhor Siva, o Rei Sudyumna é imediatamente transformado em uma mulher, que então se casa com um homem e gera uma criança com ele. O guru de Sudyumna, Vasistha Muni, roga então ao Senhor Siva para transformar Sudyumna novamente em um homem. Siva concede que o rei se torne um homem e governe seu reino mês sim mês não, mas que, mês sim mês não, ele permanecerá uma mulher casada.

É significante que os cidadãos de Sudyumna não aprovaram ou receberam bem este arranjo. O Bhagavatam declara: nabhyanandan sma tam prajah.
O verbo sânscrito abhi-nand significa “dar boas vindas, aprovar, aplaudir, reconhecer etc.”. Portanto, os cidadãos não receberam bem, aprovaram, reconheceram, aplaudiram etc. seu rei que, mês sim mês não, tornava-se uma mulher.
Além disto, parece que o próprio Rei Sudyumna estava envergonhado por causa de sua mudança mensal de gênero. Tanto Sridhara Swami quanto Vira Raghavacarya comentam que todo mês o rei escondia sua situação (da mudança de seu gênero) por vergonha. Visvanatha Cakravarti Thakura concorda que o rei escondia sua situação.

Claramente o rei não era homossexual no sentido moderno. Mas esta história demonstra um importante fato sobre a psicologia humana: as pessoas em geral não recebem bem ou aplaudem a irregularidade de gênero. Embora esta história, como a anterior, não apresente uma descrição explícita e não-ambígua da homossexualidade, nem ofereça qualquer regra ou conduta em relação a isto, lembre que Prabhupada declara em seu significado ao Bhagavatam 3.20.26:

“Aqui subentende-se que o apetite homossexual de um macho por outro surgiu neste episódio da criação dos demônios por Brahma.”
Muito embora seja dito que a homossexualidade tenha existido desde o início da criação, o Bhagavatam não a descreve explicitamente nem a condena. Portanto, de acordo com a própria declaração de Krishna [MB 8.49.49], uma vez que não encontramos um estabelecimento de regras específicas, explícitas e não-ambíguas para a conduta em relação à homossexualidade, devemos nos empenhar em um raciocínio espiritual sobre isto.

RACIOCÍNIO MORAL ACERCA DA HOMOSSEXUALIDADE
É um princípio básico da consciência de Krsna que este mundo material é um reflexo pervertido do mundo espiritual eterno. Nossos corpos materiais são sombras ou reflexos de nossos corpos eternos e espirituais. E Krishna, Ele próprio, é a Pessoa Suprema com um corpo supremo eterno. Textos sagrados como o Srimad-Bhagavatam e o Bhagavad-Gita revelam em detalhes a natureza, comportamento e atividades do Supremo Senhor Krishna, e, deste modo, nós possuímos um padrão objetivo absoluto diante do qual podemos medir nosso próprio comportamento. Isto é especialmente verdadeiro porque não temos apenas informação das atividades de Krishna no mundo espiritual, mas também sabemos de Suas atividades neste mundo material, onde Ele desce como um avatara para demonstrar dharma, comportamento apropriado, por meio de Sua própria vida na terra e através das vidas de Seus devotos puros que O auxiliam.

Desse modo, podemos dizer que o padrão absoluto, objetivo e eterno para relacionamentos conjugais é que tal relacionamento deveria desenvolver-se entre um homem e uma mulher que possuam, respectivamente, qualidades masculinas e femininas tanto no corpo quanto na mente. Além disto, tal relacionamento conjugal deve ser dedicado ao transcendental serviço devocional e deve em última análise visar ao amor espiritual puro, livre de luxúria material.

Neste mundo, encontramos algum nível de impureza em quase todo relacionamento conjugal. Entretanto, a união apropriada entre homem e mulher, em corpo e mente, mesmo neste mundo imperfeito é, em um sentido, um reflexo mais próximo do padrão eterno do que aquele que encontramos em sexualidades irregulares que não refletem padrões absolutos.

O Senhor Krishna declara no Bhagavad-Gita 7.11, que Ele está presente na sexualidade que não se opõe ao dharma. Srila Prabhupada ensina que o sexo é, em última análise, destinado à procriação devotada ao serviço a Deus. Mesmo se a maioria dos devotos grhastas lutam com este padrão e, na prática, restringem-se à versão mais fácil da regra – não praticar sexo fora do casamento – o padrão mais elevado ainda é o ideal ao qual todos os devotos sérios deveriam aspirar. O fato de muitos ou mesmo a maioria dos grhasthas acharem difícil agir sempre na plataforma ideal não invalida de modo algum, nem mesmo diminui, o valor do ideal.

Um exemplo mundano serve para ilustrar este ponto: porque a sociedade americana, mesmo em face da disseminada hipocrisia, preservou o ideal de igualdade social e legal, o movimento dos Direitos Civis Americanos (American Civil Rights movement) foi capaz de apelar a este ideal na busca por justiça racial. Similarmente, é essencial para o progresso de seus membros que a ISKCON preserve o ideal espiritual de sexo para procriação entre um homem e uma mulher adequados, que estejam unidos pelos votos sagrados do matrimônio.

Mas como a ISKCON deveria lidar com a homossexualidade? Consideremos o assunto à luz da filosofia moral vaishnava, enfocando as diversas tensões morais que devem ser equilibradas.

CONCLUSÃO
A justiça dita que as almas rendam-se a Deus, abandonando todos os pecados. A misericórdia dita paciência e compreensão. Em última análise, devemos fazer o que é melhor para o devoto individual e para a sociedade de devotos. Embora que, até certo ponto, haja tensão entre os desejos e necessidades da sociedade e aqueles do indivíduo, devemos, em última análise, descobrir um modo de encorajar e inspirar os devotos individuais com dificuldades especiais e, ao mesmo tempo, manter a santidade do padrão dos princípios morais e espirituais. A ISKCON deve equilibrar justiça e misericórdia, o ideal e o real. A ISKCON deve defender a importância dos atos morais, mas a ISKCON deve também fazer aquilo que produzirá conseqüências benéficas.

Prabhupada enfatiza que a consciência de Krsna é um processo gradual. Ele ensinou isto, literalmente, centenas de vezes. Aqui estão duas provas tiradas de centenas de declarações que ele fez sobre este assunto:

“Todos devem purificar o coração por um processo gradual, não abruptamente” [Bg 3.35, Significado].

“Portanto, cabe ao governo encarregar-se de treinar todos os cidadãos de maneira tal que, através de um processo gradual, elevem-se à plataforma espiritual e compreendam o eu e que relação tem com Deus” [Bhag 6.2.3 Significado].

Levemos em consideração o que a palavra “gradual”* realmente significa. Aqui estão algumas definições de dicionários padrão:

Gradual: “prosseguimento ou desenvolvimento lento por passos ou níveis; prosseguimento em pequenos estágios; movimento, mudança ou desenvolvimento através de níveis delicados ou muitas vezes imperceptíveis; mudança lenta”.

Algumas pessoas acham que encorajar a monogamia gay é encorajar a homossexualidade. Para testar este argumento, apliquemo-lo a uma outra atividade pecaminosa: abuso de drogas.

De fato, há muitos vaishnavas sinceros ao redor do mundo que lutam contra alguma forma de abuso de substância. Se a ISKCON seguir o exemplo de outras religiões e oferecer programas para ajudar membros fiéis a superar tais problemas, e se os devotos recuperados são elogiados e encorajados quando reduzem seu uso de drogas, isto significa que a ISKCON está encorajando, admitindo ou justificando o uso de drogas? Obviamente que não.

Similarmente, encorajar devotos que estão lutando para regular, reduzir e eliminar a sexualidade pecaminosa de qualquer espécie não é elogiar ou encorajar atividades pecaminosas. A verdade é o oposto: nós estamos elogiando e encorajando a redução e a eliminação gradual de tais atividades.

No caso de um casal de devotos grhasthas, o sexo dentro do casamento, mas não destinado à procriação, é claramente pecaminoso, pelo menos num senso estrito. Embora algumas vezes os devotos declarem que “não praticar sexo ilícito” significa “não praticar sexo fora do casamento”, na verdade este é o padrão que muitos respeitados grhasthas são capazes de seguir. Por que então nós admitimos um ato sexual o qual é, no senso mais estrito, pecaminoso? Certamente porque este é o menor de dois males, o maior mal sendo o sexo fora do casamento.

Surge então a questão: a diretriz de escolher dos males o menor é valida somente para heterossexuais, ou esta é também uma estratégia necessária para homossexuais? Leve em consideração que Prabhupada enfatiza que a consciência de Krsna é um processo gradual, é um processo que prossegue lentamente, passo a passo. A noção de um processo gradual logicamente acarreta a noção ulterior de que os passos graduais na direção certa são apenas isto: passos na direção certa. E, uma sociedade espiritual deve encorajar todos seus membros a darem passos na direção certa.

Finalmente, devemos levar em consideração o princípio moral último, encontrado no Padma Purana e citado no Sri Caitanya Caritamrta 2.22.113:

“Vishnu deve ser sempre lembrado e jamais esquecido. Todas as injunções e proibições só podem ser servas dessas duas”.

Srila Prabhupada escreve em seu significado a este verso: “Existem muitos princípios regulativos nos shastras e muitas orientações dadas pelo mestre espiritual. Esses princípios reguladores devem agir como servos do princípio básico – isto é, devemos sempre lembrar-nos de Krishna e jamais esquecê-Lo”.

Similarmente, o próprio Senhor Krishna declara no final do Gita, 18.66:

“Abandone todos os princípios morais/ religiosos e venha a Mim exclusivamente por abrigo. Eu te protegerei de todas as reações pecaminosas. Não temas!”.

Portanto, considerando a filosofia moral vaishnava, como ensinada pelo próprio Krishna e por Seus devotos puros, a ISKCON deve encorajar os devotos sinceros que, às vezes, de boa fé e dentro de limites racionais, escolhem dos males o menor a fim de se estabilizarem no caminho espiritual. Este princípio aplica-se a sexualidade humana mutuamente consentida entre adultos.

Nota de Tradução:
Acaryadeva traduziu alguns versos das escrituras, presentes neste artigo, de forma um pouco diferenciada do original em inglês de Srila Prabhupada. Neste caso, traduzi a versão de Acaryadeva como consta em seu artigo original em inglês. Os versos e comentários citados, que estão iguais ao original inglês de Srila Prabhupada, transcrevi a tradução feita pela BBT Brasil, mantendo os resumos, pequenas alterações e cortes feitos por Acaryadeva em seu artigo original em inglês.

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